A questão básica da visão epistemológica de Paulo Freire e de Erich Fromm está na premissa materialista dialética de que o conhecimento é construído socialmente, logo, nunca é neutro. O conhecimento, nesta perspectiva, é o desvelamento da realidade – associado, prontamente, com a conscientização.
Assim Fromm define o verbo conhecer:
Conhecer começa com o destroçamento das ilusões, com o desilusionamento (Ent-tauschung). Conhecer significa penetrar através da superfície, a fim de chegar às raízes, e, por conseguinte, às causas; conhecer significa estar de posse da verdade; significa penetrar além da superfície e lutar crítica e ativamente a fim de se aproximar cada vez mais da verdade.
A realidade, segundo esta premissa inicial, é objetiva, material. Porém, a ideologia faz com que esta realidade não seja percebida de forma clara pelos homens. Esta venda moral é chamada pelos pensadores marxistas de ideologia.
Erich Fromm analisando o problema da consciência em Marx afirma:
Em primeiro lugar, deve-se notar que Marx, como Spinoza e mais tarde em Freud, achava que a maioria do que os homens pensam conscientemente é uma percepção “falsa”, é ideologia e racionalização; que as verdadeiras molas mestras das ações do homem são inconscientes para este. Segundo Freud, elas têm suas raízes nos anseios libidinosos do homem; segundo Marx, em toda a organização social do homem que norteia sua percepção para certas direções e o impede dar-se conta de determinado fato e experiências.
É importante saber que esta teoria não pretende contestar a realidade ou o poderio das idéias e ideais. Marx fala da percepção, não das idéias. É exatamente a cegueira do pensamento consciente do homem que lhe impede de tomar conhecimento de suas verdadeiras necessidades humanas e de ideais nele arraigados. Só se a falsa percepção é transformada em verdadeira, isto é, só se tomamos conhecimento da realidade, ao invés de deturpá-la por meio de racionalização e ficções, podemos também dar-nos conta de nossas necessidades reais e verdadeiramente humanas. (FROMM, 1962. p.30-31)
Freire (1977), partindo da questão da consciência de classe analisada por Marx e Engels (1989), conclui que a tomada de consciência se desenvolve em dois níveis de consciência. O primeiro nível tratado por Freire é da consciência “semi-intransitiva” e o segundo é a consciência “transitivo-ingênua”.
A consciência semi-intransitiva é a modalidade de consciência do oprimido que ainda está totalmente submerso na ideologia dominante. Segundo Freire (1977. p.73), sobre a este tipo de consciência:
Chamamos esta forma de consciência “semi-intransitiva”. Em sua quase imersão na realidade, esta modalidade de consciência não consegue captar muitos dos desafios do contexto ou os percebe distorcidamente. Sua semi-intransitividade envolve uma certa obliteração que lhe é imposta pelas condições objetivas. Daí que no seu “fundo de visão” os dados que mais facilmente se destaque sejam os que dizem respeito aos problemas vitais, cuja razão de ser, de modo geral, é sempre encontrada fora da realidade concreta. É que, a este nível de quase imersão, não se verifica facilmente o que chamamos de “percepção estrutural” dos fatos, que implica na compreensão verdadeira da razão de ser dos mesmos. Desta forma, a explicação para os problemas se acha sempre fora da realidade, ora nos desígnios divinos, ora no destino, ou também na “inferioridade natural” de homens e mulheres cuja consciência se encontra a este nível. (...) Sua ação tem caráter mágico-defensivo ou mágico-terapêutico.
A consciência transitivo-ingênua é a consciência que surge com a emersão das massas populares. É a consciência em transição, de um estado de consciência de “classe em si”, que é ingênua – encoberta por mitos, para uma consciência de “classe para si” – com dimensão real da realidade social. Quando as classes dominantes percebem o surgimento de tal processo, agem violentamente, através de formas violentas de repressão – como foi o golpe de estado de 1964, no Brasil. Freire (1977. p.75) vê este processo da seguinte forma:
Desta maneira, a consciência transitiva emerge como consciência ingênua, tão dominada quanto a interior, mas indiscutivelmente mais alerta com relação à razão de ser de sua própria ambigüidade.
Por outro lado, a emersão da consciência popular, mesmo ainda ingenuamente transitiva, provoca o desenvolvimento da consciência das classes dominantes. É que intransitividade ingênua anuncia, nas massas populares emersas, a constituição da consciência de classe dominada, com que se assume como “classe para si”. Desta forma, assim como há um momento de surpresa entre as massas populares quando começam a ver o que antes não viam, há uma correspondente surpresa entre as classes dominantes quando percebem que estão sendo desveladas pelas massas. Esta dupla revelação provoca ansiedades numa e noutras.
A consciência de “classe para si” desenvolve-se na práxis, no momento em que a consciência transitivo-ingênua busca organização e parte para a luta. Na perspectiva marxista a prática e a teoria são parte do mesmo movimento – a práxis revolucionária.
Assim não é possível se conscientizar, ou conscientizar alguém, estando fora da realidade prática. A visão teleológica das ciências é refutada por este tipo de visão gnosiológica. A inserção na luta e o compromisso, enquanto sujeito do processo, são condições a priori na construção do conhecimento crítico. Conhecimento acrítico, nesta concepção, é ideologia – não existe, é criado apenas como forma de dominação.
Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos implica uma espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade. (FREIRE, 2001. p. 80)
Por isso Freire chama a consciência dos recém-alfabetizados, nas letras e/ou na leitura do mundo, de consciência transitivo-ingênua. Pois, somente será uma consciência de “classe para si” no momento em que sirva para a transformação – na práxis revolucionária. A inserção crítica, que Freire trata, nada mais é que a práxis. Assim para Freire (idem. p. 83) a educação problematizadora “se funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora da busca da transformação criadora”.
*Trecho de Meu livro:
Interessante seu texto, mas faltou a bibliografia no fim dos texto. Fiquei curioso em saber a qual livro se fazia reverencia em "Freire, 1977".
ResponderExcluirFREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
Excluirobrigado.
ExcluirParabéns. Ótimo texto, nos ajuda a fazer a leitura do momento político e da crise cultural que estamos vivendo.
ResponderExcluirObrigado. Este texto já completou 10 anos, fez parte de uma monografia de pós-graduação.
ExcluirParabéns. Ótimo texto, nos ajuda a fazer a leitura do momento político e da crise cultural que estamos vivendo.
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